Acordo em pânico porque me deixei dormir. Lavo a cara e olho para a parede em frente imaginado como estará a minha cara. Volto â cama para ver as horas no telemovel. 6h da manha! "A sério Gisela?!?". Mas já me levantei e o sono já se foi por isso decido arrumar o roupeiro. A ansiedade fala mais alto e ainda nao sao 7h quando decido sair na direcao do Comedor. Como nao quero ferir susceptibilidades decido dizer "Hola" a todos por quem passo. Entre a música latina de fundo, as buzinas desenfreadas das Moto-Táxis, vou sendo brindada com alegres e sinceros "Buenos dias señorita". Suspiro. Sorrio e absorvo toda a magia que sinto no ar.
Mal chego ao Comedor dezenas de "pequena carinhas" voltam-se e o burburinho comeca. Entre "como te llamas?" e "Hola Señorita" vou-me apresentando. Tenho a certeza que nem sempre os irei olhar desta forma, mas naquele momento sao todos tao fofos e adoraveis que gostava de me desdobrar em cem para abraca-los todos ao mesmo tempo.
Sorrisos tímidos. Maozinhas pequeninas que me puxam. Beijinhos doces. Olhares inquietos. Abracos. Sinto literalmente que nao tenho maos e bracos suficientes. Entretanto a Ena, o Emil, a Miranda e a Nicole correm entre a cozinha e as mesas com canecas de leite (achava eu) e pao. Tento ajudar, mas as maozinhas que me puxam e os abracos fortes nao me deixam.
Agarro numa caneca de leite e num pao e dou um gole sôfrego. "Oh meu deus!! O que é isto?! Uma susbtância semi-consistente cujo sabor nao identifico, talvez doce, nao sei, escorre-me pela garganta (A sério?! As mentes mais perversas que se retirem por favor!). Apetece-me mandar o resto pela janela, mas tenho quatrocentos olhos em cima de mim e deixar na caneca também nao é opcao. Abro a boca e bebo tudo de uma só vez, como se arrancasse um penso rápido (Venham 3 ou 4 pensos!!).
No final do pequeno almoco, as criancas vao embora e ficam apenas as trinta que vao participar no acampamento de Verao esta semana. "Ordenadamente" (Ai, como este conceito é relativo) sao separados por idades. Ficando um grupo de "chiquititos" (Até aos 8 anos), um grupo de "niños" (até aos 11 anos) e um grupo de "jovenes" (até aos 15 anos). Esta é a semana das ciências por isso o dia é passado entre aulas de fotografia, mini-fosseis, "análises CSI" e outras actividades. Nao se trata apenas do que estamos a ensinar, mas sim de proporcionar um ambiente descontraido, divertido e seguro para que possam ser aquilo que sao (sem saber, algumas), criancas.
Ao ajudar o Emil na aula de fotografia apercebo-me que nao sorriem muito. Faco palhacadas e vou conseguindo arrancar uns sorrisos timidos, mas que rapidamente se desvanecem. Apercebo-me entao dos olhares. Mergulho naqueles pequenos olhos irrequietos mas já tao sofridos e sinto-me triste. Perecebo que muitos deles nao saber ser criancas. Porque desde cedo tiveram que aprender a sobreviver no mundo adulto sozinhos. Porque sao os mais velhos de 10 irmaos e têm que tomar conta dos mais novos. Porque já passaram por tanto e nunca ninguem lhes disse que ia tomar conta deles. Que é suposto fazerem asneiras (mesmo quando lhes ralhamos). É suposto partirem coisas. Pularem e rirem como se só houvesse isso para fazer. Nao é suposto sentirem culpa por naquele momento se sentirem bem e quererem sorrir.
Percebo agora o desafio que tenho pela frente. Antes de tudo o resto quero ajudá-los a "ser crianca" (Afinal sei sê-lo tao bem...). Muitas palhacadas, gargalhadas e musicas depois comeco a chegar a alguns deles e a sensacao é das mais calorosas que já tive. Mas também sei que o entusiasmo pela novidade (eu) vai passar rápido. Depois vem a indiferenca aparente e a desconfianca. Sabem que nao vou ficar para sempre. Nao se querem apegar muito a mim. Nao querem sofrer mais um abandono. Aqui surge o verdadeiro desafio. Conseguir chegar a eles, tornando-me numa parte importante das suas vidas, sem me tornar essencial ou única. (Nota mental neste momento: Gisela Duarte, isto vale para ti também. Sabes que nao vais ficar para sempre. Sabes que nao te podes apegar demasiado.)
No meio de todas as actividades a hora de almoco chega rápido (Oh meu deus, que confusao). "Señorita agua por favor", "Yo quiero bastante!", "Poquito para mi!". Tabuleiros repletos com copos de água, pratos que voam da cozinha, garfos a baterem nas mesas. Ok, está na hora de perceber o esquema. Ir ter com a Siñora Maria (a cozinheira, voluntaria há mais de 30 anos aqui) e pedir as doses. Levar às criancas e perguntar sempre se está bem ou se querem mais ou menos. Nao podem deixar nada no prato. Dar atencao a todos os que me vao puxando e perguntando o nome. Responder às suas questoes. Compreende-los (ou tentar) mesmo com o arroz a saltar da boca e o barulho de fundo. Servir mais água. Respirar. Exaustao.
Quando a última crianca sai do Comedor até mesmo o silêncio parece gritar. Como podem duas horas ser tao cansativas? Sentamo-nos nas cadeiras de palha completamente prostrados e pergunto se é sempre assim. Sorriem. Soltam uma pequena gargalhada e dizem para nao me preocupar que me vou habituar. "Fica pior", diz a Miranda. Sao as férias do Verao e há muitos que nao vêm. Os meus olhos esbugalhados dizem tudo. "Nao te preocupes", diz a Nicole, "ainda temos mais dois meses de acampamento de verao".
A tarde é passada a preparar as aulas do dia seguinte, interrompida apenas para cantar os Cumpleaños â Siñora Maria. Recordo-me, entretanto, que amanha sao os anos da minha irma e sinto os olhos a humedecerem. Respiro fundo. Ela sabe que estou sempre com ela.
O bolo é uma verdadeira obra de arte, com riscas cor de rosa e um ganso gigante. Uma espécie de "piñata" em versao bolo. O sabor nao desilude. Tal e qual o aspecto (Deus, oh deus, mas que raio de costume é este em que se tem que comer tudo?!...). Nunca pensei que pudesse ser tao penoso comer uma fatia de bolo. Mais tarde em conversa com a Ena, apercebo-me que pensou e sentiu o mesmo. Para brindar e (felizmente) empurrar o bolo trouxeram 5 cervejas "Cusqueñas" que acabam por disfarcar o seu sabor (A cerveja é optima!).
O dia termina cedo porque me sinto completamente exausta, como se me tivessem sugado toda a energia. Mas sinto-me feliz e cheia de vontade de "pôr as maos à obra". Adormeco, mais uma vez de luz acesa (tento manter-me em contacto com o meu lado infantil sempre que posso) e sou embalada pelo ladrar dos caes que correm desenfreados pela rua...
Parabéns señorita...
ResponderEliminarRealmente não vai ficar sempre...mas se bem a conheço, o tempo que aí vai estar vai fazer muita diferença em todos esses "olhinhos tristes"...
Usa a tua alegria, energia,sensibilidade e competências múltiplas...e deixa a tua imaginação fazer o resto.
Com orgulho...muito...
Mamãe
"Sabes que nao vais ficar para sempre. Sabes que nao te podes apegar demasiado." - Adorei!
ResponderEliminarClaro que sabes. Sabes...mas apenas sabes, apenas sabemos!
Aproveita cada segundo... ; )