sábado, 21 de janeiro de 2012

Sexta-feira. Louca sexta-feira.

Hoje é dia de irmos para a praia, sitio onde muitos deles nunca estiveram (apesar de viverem a 10 minutos). O pequeno almoco é especial. A Miranda preparou iogurte e estava delicioso!

Assim que termina fazemos a contagem e chega a hora crítica. Enfiar 30 pessoas dentro de uma Hiace (Onde está o Houdini quando precisamos dele?). O orcamento é muito apertado e temos que evitar gastos com a gasolina. por isso temos que ir todos de uma só vez. Dez penosos e pesados minutos depois chegamos à praia. Sem querer cair na lamechice, nunca mais me vou esquecer daquela imagem. Os miudos correm pela praia entre gargalhadas e risos nervosos. Saltam, atiram areia uns aos outros, enquanto na linha do horizonte os golfinhos saltam. Senti-me verdadeiramente num momento mágico e sei que o vou guardar para sempre comigo.

Desvaneceu rápido, no entanto. Quando dou por ela alguns deles já entravam no mar (que estava bastante agitado). Achava eu que a piscina tinha sido stressante. A cada onda o meu coracao parava e só descansava quando contava as cabecas todas. De maos dadas com uns enquanto outros se agarravam às minhas pernas ensino-os a mergulhar nas ondas. Grito para os que se afastam. Vejo o desespero estampado na cara dos outros voluntários. Mas as gargalhadas ecoavam e abafavam todo e qualquer outro som. Foi uma manha muito especial. Castelos na areia. Lutas de água. Jogos de bola. Vendedores ambulantes. Mergulhos e mais mergulhos. Corridas na berma da água. Sustos. Corridas esbaforidas para dentro de água de cada vez qu um deles se afastava demais. Agora que penso nao devo ter andado muito longe de um ataque cardiaco. Sei com toda a certeza que desde que pisei a areia, só voltei a respirar fundo quando todos estavam sentados na Combi para voltar.

Assim que nos sentamos, toda a energia e extase deu lugar à exaustao e os olhos pareciam querer, mais do que nunca, fechar. Alguns dos mais pequenos adormecem no nosso colo e embalada pelas covas da estrada quase que jurava que adormeci tambem.

Um penoso servico de almoco depois e nao sentia nada. Ou melhor sentia que uma manada de bufalos (âs cavalitas de uma manada de elefantes) me tinha atropelado. Disse até já e arrastei-me até casa para tomar um banho. Deitei-me, ainda enrolada na toalha, e experenciei em primeira mao as maravilhas da siesta.

Acordei, ainda completamente dorida, mas revigorada. Estou com o sindrome de sexta-feira, mas percebo que terei que o guardar para mim. De regresso ao Comedor apercebo-me que sexta-feira â noite é sexta-feira à noite seja onde for (Nesse momento quase que juro que ouvi a Avé Maria em plano de fundo). Enquanto me apresentam a uma garrafa de Vodka recém comprada (Como se precisassemos de apresentacoes), apresento-lhes o "Capitao Pifo", ou como o baptizamos mais tarde, "El capitan borracho".

Rimos desenfreadamente e partilhamos histórias hilariantes dos nossos países. Descomprimimos. A Cynthia junta-se a nós e a festa está completa. Música, gargalhadas, morangos regados a vodka, mozzarela com tomate e oregáos e espanholês. Estava formado o ambiente para recuperarmos da "longa semana". Longa, torna-se na realidade um conceito relativo. Na realidade passou assustadoramente rápido. Apresento-lhes finalmente a minha gargalhada. Estreitamos lacos. Temos, afinal, tanto em comum...

Cucarachas,ceviche e histórias de terror.

Quarta de manha. Acordo bem disposta e cheia de energia. Tomo banho, visto-me e abro o saco em cima da cama para me preparar para sair. De repente vejo algo preto e enorme a passear dentro do meu saco. Berro. Sinto vontade de chorar. Comeco a suar das maos. Fecho os olhos e encosto-me à parede. Tenho vontade de fugir (Mas pressinto que nao ia longe, pois o meu porta-moedas esta no saco). Vou para o quarto ao lado e tento ser racional. Ok. Respiro fundo, faco-me mulher e vou chamar a minha vizinha do lado. Assusta-se com o meu ar de pânico, mas entredentes vai percebendo o que se passa. Segue-me até casa, entra no meu quarto e trata do assunto. No fim só me diz com um sorriso timido "Que también lo tengo mucho miedo!". Petrifico de vergonha e desfaco-me em desculpas. Sorri e diz apenas que estamos aqui uns para os outros. Sorrio de volta e agradeco mais uma vez.

O resto da semana passa a voar. Entre as manhas com as criancas e o som reconfortante do meu nome nas suas vozes. Fazemos jogos. Dancamos. Corremos. Jogamos a bola. Abracos, muitos abracos. Beijinhos. Apercebem-se que no meu relogio de pulso ainda trago a hora portuguesa. "Siñorita Gisela, que horas son en Portugal?". Perguntam vezes sem fim e ficam sempre maravilhados com a resposta!

As tardes sao passadas a preparar as actividades do dia seguinte e a discutir os casos mais complicados. Apercebi-me entretanto que uma das criancas tem uma severa descoordenacao motora, apesar dos seus 11 anos. Alerto-os para esse facto e disponibilizo-me para trabalhar com ela.
Sou posta a par de historias verdadeiramente tristes. Sinto impotência. Sinto que sou pouco para o que precisam. Sinto o quao desconcertante é a realidade que me rodeia. Sinto vergonha por todas as vezes em que me queixei da minha vida.

Entre uma nova deliciosa ida à piscina, desta vez mais ordenada que a primeira e o Ceviche (Um prato tipico à base de calamares e peixe cru aos "pedacinhos", absolutamnete delicioso), a semana vai passando.

Sinto-me numa montanha russa de emocoes e sensacoes. Cada vez que o telefone toca o coracao aperta. Sinto que nao vai ser fácil estar tanto tempo longe das pessoas que amo. Sinto-me mal, por vezes, porque penso no quanto as estou a magoar com a minha ausência. Mas tambem sei (sabem) que tenho que fazer isto e a cada dia que passa sinto o quao precisa sou. Tenho plena consciencia de que nao posso mudar o mundo, mas acredito que posso (e vou) fazer a diferenca na vida de algumas destas criancas (Sei que elas já fazem a diferenca na minha). Devo-lhes isto a elas, a mim e a todos os que "deixei para trás".

Os momentos mais sérios vao sendo intercalados com longas conversas condimentadas com o fantástico Guacamole da Nicole e os indiscrititiveis cozinhados do Emil. Há jantares que se tornam verdadeiras experiências gourmet. O ambiente é de camaradagem e respeito mútuo. Sao uma verdadeira familia e percebo que serao, sem duvida, o meu apoio nos próximos meses.

"Hola Gringa!"

Hoje fui acordada por uma barriga em tumulto. Percebo que o dia vai ser duro e tomo um comprimido na esperanca que a minha barriga acalme rápido. Visto o bikini e preparo-me para uma manha na piscina. As criancas nao podiam estar mais felizes. Assim que chegamos à piscina, a histeria foi geral. O desafio foi puxá-los a todos para o chuveiro antes de saltarem para a piscina. As reccoes foram as mais variadas. Desde os mais aventureiros que se atiravam sem medo, àqueles que nos agarravam com toda a sua forca mal o primeiro dedo do pé tocava a água. O coracao sempre nas maos, a contá-los constantemente e um sorriso gigante (a alegria deles era simplesmente contagiante).

Saio de mim e observo aquelas criancas. A maior parte delas de cuecas, corsarios e t-shirt, porque nao têm roupa de praia. Penso em como basta tao pouco para fazer alguém feliz, por vezes. A ideia de que há criancas que nunca tinham visto uma piscina era absusrda para mim. Arrumo de vez as minhas ideias pré-concebidas para um canto. Sinto-me verdadeiramente feliz e privilegiada por poder presenciar aquele momento. E é entao que a minha crianca interior fala mais alto e acedo aos pedidos incessantes... Bomba!!!

A manha passou a voar, como todos os bons momentos. De regresso ao Comedor e após mais um extenuante almoco vou com a Ena a Chincha, a cidade mais próxima daqui. Apercebo-me do quao pequena é a vila onde estou. De volta ao transito, as motas que furam por todos os lados, os moto-táxis a buzinar, os vendedores ambulantes a chamar por nós. Sinto que entrei numa segunda dimensao. Sinto tambem que devemos ter vestido a roupa ao contrario porque todos nos olham de alto a baixo. "Hola gringas", torna-se na frase da tarde. Rimo-nos. Há música por todo o lado e sinto-me mesmo bem disposta. Sinto-me num filme "mexicano" com uma banda sonora a rigor. Damos uma volta pelo mercado, sou apresentada ao senhor dos abacates (e que bons que sao), conheco os cantos mais baratos e divirto-me a observar todo o tipo de iguarias que se vendem por ali.

Uma volta de colectivo mais tarde e estamos de volta o Comedor. A Miranda vem ter comigo e diz para ir com ela comprar cerveja. Ia-me comecar a explicar, para nao me assustar, que nao é sempre assim. Faco uma cara triste e pergunto porque nao. Rimo-nos juntas e penso... Agora sim, vai ser perfeito (Ai e pensar que vinha apara aqui fazer uma "desintoxicacao". Nao que beba muito mae e pai!! É raro tocar em alcool... normalmente bebo por uma palhinha!).
Compramos a cerveja e pede-me que a guarde no meu saco. "Eles falam", diz ela. Quem, pergunto eu. Ri-se e diz-me "É uma vila pequena e nós trabalhamos com criancas!". Sorrio, sinto-me envergonhada por um nano-segundo e voltamos sorridentes para o Comedor.

De regresso falo com os meus pais, a minha irma, o meu primo e os meus padrinhos. Estavam todos juntos a celebrar o aniversário da minha irma. Sinto um aperto no peito tao grande e um peso enorme por estar tao longe. A minha irma comeca a chorar e o ar torna-se dificil de respirar. mas nao quero que fiquem tristes por isso sorrio e digo umas asneiras para que se riam. Canto os parabéns com eles e despeco-me. As lágrimas caem-me pelo rosto mas tenho que ser forte. Já sabia que ia ter saudades. Trago-os sempre comigo e sei que me trazem sempre com eles.

Subo as escadas e vou ter com o resto do pessoal. Abrimos a cerveja e brindamos à minha irma. Nao sei se é do calor ou das mudancas todas, mas dois copos e meio depois sinto-me tonta. Rimo-nos. Partilhamos algumas histórias. Falamos da crise na Europa (Sim, até aqui, é verdade!). E decidimos ir jantar fora. Pedem todos o mesmo e estava prestes a embarcar cegamente em mais uma experiência sensorial, quando me dizem que é coracao grelhado! O meu ABS dispara e decido pedir a lista. Figados e intestinos depois, decido-me pelo coracao. Quem diria? Parece mesmo bife grelhado! Regamos a refeicao com Inca Cola, uma espécie de coca-cola amarela fluorescente que sabe a pastilha elastica e relaxamos. Terminado o jantar, rumo a casa com o meu vizinho do lado, o Emil.

Ainda nao acabei de pousar o saco e batem-me ao vridro de casa (Ou há quem lhe chame porta). Espreito do meu quarto e vejo os contornos de um homem com uma camisa aberta ate ao umbigo. Entro em panico. Ainda com o coracao na boca e sem saber o que fazer, comeco a ouvir o meu nome. Respiro fundo e rio-me da minha figura. É o siñor Elvio, o meu "papá peruano". Quer-me conhecer e dar as boas vindas. Quer tambem que saiba que o que quer que precise posso contar com eles e que vao tomar bem conta de mim. Agradeco toda a simpatia e hospitalidade genuina e despeco-me com um abraco.

De regresso ao quarto sinto um pequeno som no meu saco, mas como tinha um saco de plástico lá dentro ignoro (Ou adio inconscientemente o óbvio). Estou tao cansada que atiro o saco para o chao. Deito-me e adormeco profundamente.

O primeiro dia. Buenos Dias Señorita Gisela!

Acordo em pânico porque me deixei dormir. Lavo a cara e olho para a parede em frente imaginado como estará a minha cara. Volto â cama para ver as horas no telemovel. 6h da manha! "A sério Gisela?!?". Mas já me levantei e o sono já se foi por isso decido arrumar o roupeiro. A ansiedade fala mais alto e ainda nao sao 7h quando decido sair na direcao do Comedor. Como nao quero ferir susceptibilidades decido dizer "Hola" a todos por quem passo. Entre a música latina de fundo, as buzinas desenfreadas das Moto-Táxis, vou sendo brindada com alegres e sinceros "Buenos dias señorita". Suspiro. Sorrio e absorvo toda a magia que sinto no ar.

Mal chego ao Comedor dezenas de "pequena carinhas" voltam-se e o burburinho comeca. Entre "como te llamas?" e "Hola Señorita" vou-me apresentando. Tenho a certeza que nem sempre os irei olhar desta forma, mas naquele momento sao todos tao fofos e adoraveis que gostava de me desdobrar em cem para abraca-los todos ao mesmo tempo.
Sorrisos tímidos. Maozinhas pequeninas que me puxam. Beijinhos doces. Olhares inquietos. Abracos. Sinto literalmente que nao tenho maos e bracos suficientes. Entretanto a Ena, o Emil, a Miranda e a Nicole correm entre a cozinha e as mesas com canecas de leite (achava eu) e pao. Tento ajudar, mas as maozinhas que me puxam e os abracos fortes nao me deixam.

Agarro numa caneca de leite e num pao e dou um gole sôfrego. "Oh meu deus!! O que é isto?! Uma susbtância semi-consistente cujo sabor nao identifico, talvez doce, nao sei, escorre-me pela garganta (A sério?! As mentes mais perversas que se retirem por favor!). Apetece-me mandar o resto pela janela, mas tenho quatrocentos olhos em cima de mim e deixar na caneca também nao é opcao. Abro a boca e bebo tudo de uma só vez, como se arrancasse um penso rápido (Venham 3 ou 4 pensos!!).

No final do pequeno almoco, as criancas vao embora e ficam apenas as trinta que vao participar no acampamento de Verao esta semana. "Ordenadamente" (Ai, como este conceito é relativo) sao separados por idades. Ficando um grupo de "chiquititos" (Até aos 8 anos), um grupo de "niños" (até aos 11 anos) e um grupo de "jovenes" (até aos 15 anos). Esta é a semana das ciências por isso o dia é passado entre aulas de fotografia, mini-fosseis, "análises CSI" e outras actividades. Nao se trata apenas do que estamos a ensinar, mas sim de proporcionar um ambiente descontraido, divertido e seguro para que possam ser aquilo que sao (sem saber, algumas), criancas.

Ao ajudar o Emil na aula de fotografia apercebo-me que nao sorriem muito. Faco palhacadas e vou conseguindo arrancar uns sorrisos timidos, mas que rapidamente se desvanecem. Apercebo-me entao dos olhares. Mergulho naqueles pequenos olhos irrequietos mas já tao sofridos e sinto-me triste. Perecebo que muitos deles nao saber ser criancas. Porque desde cedo tiveram que aprender a sobreviver no mundo adulto sozinhos. Porque sao os mais velhos de 10 irmaos e têm que tomar conta dos mais novos. Porque já passaram por tanto e nunca ninguem lhes disse que ia tomar conta deles. Que é suposto fazerem asneiras (mesmo quando lhes ralhamos). É suposto partirem coisas. Pularem e rirem como se só houvesse isso para fazer. Nao é suposto sentirem culpa por naquele momento se sentirem bem e quererem sorrir.

Percebo agora o desafio que tenho pela frente. Antes de tudo o resto quero ajudá-los a "ser crianca" (Afinal sei sê-lo tao bem...). Muitas palhacadas, gargalhadas e musicas depois comeco a chegar a alguns deles e a sensacao é das mais calorosas que já tive. Mas também sei que o entusiasmo pela novidade (eu) vai passar rápido. Depois vem a indiferenca aparente e a desconfianca. Sabem que nao vou ficar para sempre. Nao se querem apegar muito a mim. Nao querem sofrer mais um abandono. Aqui surge o verdadeiro desafio. Conseguir chegar a eles, tornando-me numa parte importante das suas vidas, sem me tornar essencial ou única. (Nota mental neste momento: Gisela Duarte, isto vale para ti também. Sabes que nao vais ficar para sempre. Sabes que nao te podes apegar demasiado.)

No meio de todas as actividades a hora de almoco chega rápido (Oh meu deus, que confusao). "Señorita agua por favor", "Yo quiero bastante!", "Poquito para mi!". Tabuleiros repletos com copos de água, pratos que voam da cozinha, garfos a baterem nas mesas. Ok, está na hora de perceber o esquema. Ir ter com a Siñora Maria (a cozinheira, voluntaria há mais de 30 anos aqui) e pedir as doses. Levar às criancas e perguntar sempre se está bem ou se querem mais ou menos. Nao podem deixar nada no prato. Dar atencao a todos os que me vao puxando e perguntando o nome. Responder às suas questoes. Compreende-los (ou tentar) mesmo com o arroz a saltar da boca e o barulho de fundo. Servir mais água. Respirar. Exaustao.

Quando a última crianca sai do Comedor até mesmo o silêncio parece gritar. Como podem duas horas ser tao cansativas? Sentamo-nos nas cadeiras de palha completamente prostrados e pergunto se é sempre assim. Sorriem. Soltam uma pequena gargalhada e dizem para nao me preocupar que me vou habituar. "Fica pior", diz a Miranda. Sao as férias do Verao e há muitos que nao vêm. Os meus olhos esbugalhados dizem tudo. "Nao te preocupes", diz a Nicole, "ainda temos mais dois meses de acampamento de verao".

A tarde é passada a preparar as aulas do dia seguinte, interrompida apenas para cantar os Cumpleaños â Siñora Maria. Recordo-me, entretanto, que amanha sao os anos da minha irma e sinto os olhos a humedecerem. Respiro fundo. Ela sabe que estou sempre com ela.
O bolo é uma verdadeira obra de arte, com riscas cor de rosa e um ganso gigante. Uma espécie de "piñata" em versao bolo. O sabor nao desilude. Tal e qual o aspecto (Deus, oh deus, mas que raio de costume é este em que se tem que comer tudo?!...). Nunca pensei que pudesse ser tao penoso comer uma fatia de bolo. Mais tarde em conversa com a Ena, apercebo-me que pensou e sentiu o mesmo. Para brindar e (felizmente) empurrar o bolo trouxeram 5 cervejas "Cusqueñas" que acabam por disfarcar o seu sabor (A cerveja é optima!).

O dia termina cedo porque me sinto completamente exausta, como se me tivessem sugado toda a energia. Mas sinto-me feliz e cheia de vontade de "pôr as maos à obra". Adormeco, mais uma vez de luz acesa (tento manter-me em contacto com o meu lado infantil sempre que posso) e sou embalada pelo ladrar dos caes que correm desenfreados pela rua...

A chegada... O comeco da partida.

A camioneta pára de repente e o meu coracao dispara. Chegamos. Desco desesperada por um cigarro. Ainda nem tive tempo para olhar à minha volta e sou chamada pela Ena. Cinco minutos num colectivo depois e estavamos em Grocio Prado.

Os primeiros minutos (ok, as primeiras horas) foram uma montanha russa de emocoes. Olhei à minha volta e tinha mais de 30 olhos esbugalhados fixados em mim. "Hola Señorita!" (o primeiro de muitos), e alguns timidos "Hola" de retorno depois seguimos para o comedor. Transpirava-se Domingo por todos os cantos, com um sol penetrante e incisivo, daqueles que transformava o mar morto numa pilha de sal.

O comedor era um pouco diferente de como o imaginara. Mas apesar das fotos o favorecerem substancialmente, continua a ser o edificio mais moderno da vila. No primeiro piso, as mesas de madeira corridas, onde sao servidas as refeicoes, a cozinha (diz que é uma especie de, pelo menos) e o escritorio da directora. No segundo e no terceiro piso as salas para as actividades e os quartos. Um olhar rápido pelas instalacoes, pegamos nas mochilas e vamos conhecer a minha casa para os proximos 2 meses (ou assim achava eu).
Há medida que vamos andando passamos pela praca principal. Era tal e qual a imaginara.Uma espécie de Tieta encontra-se com Roque Santeiro. Vou sendo apresentada à senhora das sanduiches de peixe, à senhora das sanduiches de frango e tento, infrutiferamente, decorar todos os nomes à primeira. Passando a pequena praca, entramos numa esburacada estrada de terra batida com pequenas casas em construcao, outras em aparente reconstrucao e uma camada incessante de pó no ar. Confesso que a cada passo que dou o medo do que vou encontrar vai aumentando. Paramos, de repente, em frente a uma pequena, mas muito pitoresca, casa. Coincidentemente (e nao, isto nunca me acontece), aquela que via ao fundo e desejava que fosse a minha. Tocamos â campainha e... Bem e nada! Continuamos a tocar mas ninguem abriu. Nao esperava uma parada para me receber, mas as chaves de um sitio onde pudesse pousar as mochilas, deitar-me e tomar um banho almejava tanto como uma taca de cereais anseia pelo leite.

Decidimos voltar ao Comedor para pousar as mochilas e fomos almocar. Acabamos de pedir 3 carapulcras (um prato tipico de Grocio Prado), quando se juntam a nós a Cynthia (uma amiga de Lima da Ena) e a sua mae. Um explosao de sabores depois , com vários tipos de molhos à mistura, o meu estomago da o alerta de que nao consegue aguentar mais. Pouso a colher e sou atacada por quatro "no haÇas iso!!". O meu primeiro, e penso que natural, pensamento foi - "o que é que eu fiz? O que é que eu fiz??. Respiramos todas fundo e enquanto olha de soslaio para a senhora que nos serviu, a Ena diz-me que nao posso deixar comida no prato. Nao tive tempo de dizer nada e percebi pelas expressoes que o assunto era sério. Tentei comer mais umas colheradas, mas nao consigo. Explicam-me entao que devo pedir para levar.

Confesso que à primeira vista parece um costume absurdo. Mas num sitio onde nao ha muito para comer e onde muitas pessoas passam fome é realmente falta de respeito deixar comida no prato. Aprendo, assim, que devemos sempre saber a quantidade que queremos antes de pedir, e dar essa indicacao quando pedimos seja o que for.
Descubro tambem que até entao desconhecia o que era um guardanapo de uma folha. Porque um guardanapo de uma folha tal como eu o conhecia, dá para quatro guardanapos dos deles. Preparo-me, por fim, para pagar, quando sou interrompida pela mae da Cynthia. Insiste em nos oferecer o almoco. Tenho medo que fique ofendida se insistir (afinal nao conheco os seus costumes) e tambem estou demasiado cansada, por isso acedo prontamente.

Água, preciso de água. Quero tomar banho e quero uma cama. De volta ao comedor para pegar nas mochilas conheco os outros dois voluntarios. A Nicole, uma voluntaria americana que tambem estudou Psicologia e está cá desde Maio, e o Emil, um sueco alto de olhos esbugalhados que está cá há dois meses e regressou recentemente da selva (Boa! Conselhos, quero conselhos!!).

Desta vez ao tocarmos a campainha somos brindadas por uma calorosa senhora que me abraca imediatamente e me dá as boas vindas. Finalmente conheco a minha casa. Ainda cheira a tinta e as paredes verdes ferem um pouco a vista mas estou agradavelmente surpresa. Sinto que encontrei um Oásis no meio do deserto e nem o facto da casa de banho nao ter tecto me abala o sorriso.
Agradeco à Lidia a fantástica casa com que me acolhe, elogio cada pormenor (atè pos lacinhos na sanita) e exalto o seu bom gosto (Sim, além de ser naturalmente simpática quero realmente deixá-la feliz por me receber. Afinal vai ser a minha "mama peruana", como diz a Ena, nos próximos 6 meses). Despeco-me dela e da Ena, fecho a porta de casa e respiro fundo (tem vindo a ser um hábito, eu sei).

Um turbilhao de emocoes toma conta de mim, mistura-se com o cansaco e com a exaustao fisica e sai um ataque de choro compulsivo para a mesa dois. Estou literalmente no meio do nada, longe de tudo o que conheco e a minha casa de banho nao tem tecto. O quarto nao tem janelas e tem tantas teias de aranha. Tenho tanto calor e quero tanto dormir. O que é que eu fiz? Porquê que eu estou aqui? O que é que me deu?
Sento-me em cima da cama agarrada à mochila e olho à minha volta com olhos ansiosos. Como uma crianca que espera pelos pais à porta da escola. Um telefonema catàrquico depois e respiro fundo. Atiro as mochilas para o chao, encho o peito e vou tomar banho.

Nao sei se foi da água fria mas o ataque dos cinco minutos de há pouco desvanece-se. Enrolo-me na toalha, sento-me na cama e respiro fundo. Que sensacao fantástica! Que aventura! Sinto-me feliz. Penso na sorte que tive e no quao bem as coisas estao a correr! Respiro fundo mais uma vez e desta vez vai mesmo até ao fundo. Nao fica mais preso no nó na garganta (que entretanto desapareceu).

Podemos sonhar quinhentas vezes com uma coisa, fazer promessas, até mesmo tentar concretizá-la. Mas a sensacao de a estar a viver é única. Turbilhao de emocoes. Imensidao de sentidos. Montanha russa. Intensidade. Mas assim sou eu. Para o bem e para o mal. Nao é defeito, é feitio (disseram-me uma vez).
Suspiro. Deixo a luz acesa (já enfrentei demasiado desconhecido por hoje). Olho uma última vez à minha volta. Fecho os olhos e deixo-me dormir. Amanha é "o" dia.

O gato, o japonês e o Dakar!

A noite comecou qual retrato a aguarela da minha viagem. Atribulada. Depois de uma louca viagem de táxi por uma cidade ao rubro (Eram 2h da manha de Sábado) em que iamos tentando quebrar o gelo e conhecer-nos um pouco melhor, chegamos ao Hostel. Já estava tudo tratado, a noite marcada e o quarto reservado. Fui tentando "apanhar do ar" o que senhor do Hostel ia dizendo porque o Espanhol "corridinho" é tao facil de perceber como um gago com solucos.

Subimos, finalmente, para o quarto e tivemos que entrar âs escuras porque estava um japonês a dormir e nao queriamos acorda-lo. Arranjei-me e fui aos apalpoes até aquilo que me apontaram como sendo a minha cama, a parte de baixo de um beliche que nao conseguia sequer vislumbrar. O cansaco era imenso, mas ainda assim nao pude deixar de pensar que gostaria de, pelo menos, puder ver onde me estava a deitar. O desconhecido, na escuridao, torna-se áspero ao toque, por mais macio que seja. Ainda assim, sentia-me tao cansada que fechei os olhos e deixei-me levar.
Nao passaram nem 5 minutos e sinto algo em cima de mim (e nao, ao contrario do que é suposto nao foi uma sensacao agradável). O grito da praxe, acorda-se o quarto todo (quase) e chegamos â conclusao que temos um gato no quarto. Ainda bem que as construcoes no Japao estao preparadas para terramotos, porque o quarto, literalmente, caiu, enquanto expulsavamos o gato, e o Japonês nem se mexeu.

Agora que penso com mais calma, poderia ter melhor recepcao no Perú do que ter um gato a saltar para a minha cama a meio da noite? (Tou a brincar obviamente!! A meio do dia também é agradavel!!).

Acordo e agradeco a escuridao da noite anterior. Afinal ha alturas em que estamos, sem duvida, melhor na ignorancia. Tomo o meu primeiro banho no continente Americano, visto-me e desco para uma nova vida. Tomamos o pequeno almoco, ponho uma das mochilas âs costas e agradeco aos deuses a Ena nao ter cedido â minha insistência para levar as duas.

Na rua comeco a aperceber-me que o choque cultural nao é tao grande como imaginava. Troco 100 dólares a um senhor, na rua (que para meu espanto só me cobrou 30 centimos "a mais") e vou comprar o meu primeiro maco de cigarros no Perú (que ainda hoje continua por abrir). Aqui só vendem macos de 10 cigarros, e a um preco escandaloso (Ou pelo menos era até aprender a fazer a conversao correcta).

Sao estranhas as primeiras horas num sitio novo, especialmente quando estamos sozinhas. Os sons, os cheiros, as cores. Sons conhecidos em sitios desconhecidos. Cores familiares em paisagens que nunca vimos. Cheiros novos com essencias de cheiros familiares.
Enquanto vamos caminhando sinto-me uma crianca de 5 anos, qual catavento desenfreado, como se tivesse medo que algo me escapasse. A Ena chama-me e entramos para um colectivo. O que é um colectivo? É uma carrinha ou um carro em que todas as pessoas vao para o mesmo sitio, e só arranca quando está cheio.
Mal descemos do colectivo sou recebida por uma multidao em extase. Debrucados sobre pontoes e ao longo de toda a berma da estrada centenas de pessoas batiam palmas e celebravam a minha chegada. Apercebi-me, mais tarde, que talvez alguns estivessem ali porque também o Dakar chegava a Lima naquela manha.

Foi emocionante viver aquele histerismo colectivo. Mesmo nao tendo acompanhado esta corrida, a forma alegre e extasiada como a multidao brindava cada carro que passava era contagiante. Ficamos um pouco a absorver toda aquela energia e seguimos viagem. Mais uma camioneta mirabolante. Saimos nos arredores de Lima, onde apanhamos finalmente a camioneta para Chincha.

A viagem deu para conhecer melhor a Ena e o trabalho que desenvolve no Comedor. Dá tambem para sentir a paixao que tem pelas criancas e pelo que faz. Enquanto vamos conversando vou espreitando pela janela. Vejo o oceano que nos vai acompanhando ao longo da costa e apercebo-me que nao vejo areas verdes. Como se a paisagem estivesse coberta por uma camada gigante de poeira. A primeira impressao torna-se um pouco árida, mas rapidamente me concentro novamente na excitacao de conhecer as criancas. E a poeira como que se desvanece.
Pelo caminho vao entrando vendedores ambulantes com bacias de refrigerantes e argolas com sacos transparentes repletos de todo o tipo de batata e banana frita que existe. Experimento a banana rosa frita. Saboreio cada segundo, e a banana tambem. Respiro fundo. No banco onde me sento as molas vao saltando a cada lomba que passamos e eu salto tambem. Coberta de poeira, rodeada por desconhecidos e bacias de refrigerante suspiro. Sinto-me "em casa". Nao sei para onde vou, mas aprecio cada pedra do caminho.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

A viagem. Nao. Os voos. (A viagem vai ser longa...)

A viagem comeca como nao poderia deixar de comecar uma viagem da Gi. Procuro o portao 33 e deparo-me com duas setas, em sentido opostos, uma do 1 ao 32 e outra do 34 ao 59. Se juntarmos â minha tendência natural para ser um pouco, vá, distraida, a ansiedade e duas noites de apenas 3 horas de sono, talvez se perceba o porquê de ter andado 10 minutos, qual barata tonta, à procura do portao 33. Para perceber entretanto que era literalmente no meio. Sim, mesmo em frente às escadas rolantes. Sim, aquelas por onde desci até ao terminal. Sim, onde estava quando li as setas. Paremos de rir e concentremo-nos em reter apenas os efeitos nefastos de muito poucas horas de sono.

Na fila para embarcar tento por meio de todas as ilusoes opticas de que me consigo recordar, encontrar uma forma de mingar a minha mochila, que foi intitulada de "grande demais". Lentes de aumento em olhos que vêm demais é o que eu digo. Porque aos meus olhos miopes continuava a ser pequena demais.
Para dar um ar ainda mais descontraido seguro-a apenas por uma alca (afinal de contas está tao leve), enquanto rezo por tudo para que a alca nao rebente. Resultado? Nem olharam...

Rumo agora a Frankfurt numa viagem que passou literalmente num piscar de olhos, apenas interrompido por uma duvidosa sandes de (duvido que era)frango.

Acabada de aterrar, mas nao ainda de acordar, disparo qual cavalo de corrida, enquanto luto com dois olhos colados que teimam em nao abrir, na busca do terminal B60. Após 20 minutos de corrida ofegante (para muitos, mas um passinho de formiga para uma atleta como eu) abro finalmente os olhos (afinal tèm razao quando dizem que quando pomos a lingua de fora abrimos os olhos). Sorriso confiante abalado apenas pelo pormenorzinho de nao ter a minha autorizacao ESTA (Què?!?! Foi tal e qual o que pensei). Diz que Porto Rico é solo Americano e como tal assim nao posso embarcar. Um telefonema ansioso depois e uma dose extra de paciencia do outro lado da linha (Love you), acalmo ao som da música "Authorization granted". "San Juan here I go!".

Num imenso aviao semi-vazio comeco a babar para os bancos centrais de 3 filas, a imaginar o meu leito na próximas 10 horas e 50 minutos. Ainda estou a escolher quando entra a segunda remessa de passageiros. "Afinal há mais!!", penso eu (juntamente com uma série de palavras, nada más, que nao me recordo agora). O pânico instala-se. Trata-se nao de conseguir um banco de 3 assentos, mas em defender ferozmente o meu lugar e o lugar ao meu lado.
Autorizacao para "assambarcar" o banco do lado concedida. Agente de autorizacao? Uma portuguesa resmungona, com a perna comprida e muito sono. Missao? Dormir.

Próximo passo, passar a imigracao, levantar a mala, fazer check in, receber os dois ultimos cartoes de embarque e embarcar. Tempo para este piquenique? Uma hora. Possibilidade de ficar em terra? "Ai, ai, ai, ai, ai, ai, Puerto Rico...".

Em Porto Rico, apesar de nao ter tido tempo para pensar sequer, acabou por correr tudo incrivelmente bem. Entre o pânico de passarem mil malas e a minha ter sido extraviada (ou pelo menos é a sensacao que temos quando a nossa nao é das 10 primeiras), a corrida desenfreada pelo servico de imigracao e os "caezinhos fofinhos" que vinham cheirar o nosso perfume, consigo estar na porta de embarque 30 minutos antes. Claro que o facto de termos chegado uma hora mais cedo que o previsto foi um pouco, vá, crucial.

Passado todo o frenesim, rumo finalmente para a Cidade do Panamá. Preparo-me para dormir enquanto no ecra à minha frente se preparam para passar o filme "One Day". Duas horas depois, e com os olhos exaustos, rolam-me pela cara algumas lágrimas de cansaco, que, coincidentemente, concidem com o final (nada trágico) deste drama, que acabou por ganhar a luta ao meu tao desejado descanso.

No Panamá tudo corre normalmente e até estranho deslocar-me num aeroporto a andar. Entro no ultimo aviao deste capitulo e num fechar e abrir de olhos estava no meu destino final.

Chegada a Lima, passo o controlo de imigracao, levanto a mala, e mal saio deparo-me com a Ena aos saltos e a chamar-me. Um abraco depois conheco a Miranda, outra voluntária que veio fazer companhia à Ena. Dirigimo-nos para a porta do aeroporto. A porta abre-se, respiro pela primeira vez os ares do Perú e... dou a queda (chamar-lhe-ia mesmo tralho) mais espalhafatosa de que tenho memória.

Entrada triunfante, que é como quem diz: "Peruuuuuuuú, cheguei!!!".